Sempre achei a cantora Daniela Mercury uma artista excelente. Boa
cantora, dançarina graciosa, baiana comprometida com a cultura de seu estado,
mas nada além disso.
Até aqui, ela pra mim era só uma artista como tantos outras ocupadas
com o seu mundo de divulgações, capas de revista, shows, discos, viagens, venda
de disco, o universo da música e outra coisitas mais.
Aí a Daniela resolve contar pra todo mundo que se casou com uma
mulher e então, para o meu prazer, ela muda de status social. Passa a ser uma cidadā que ao assumir publicamente
sua homossexualidade, entra em um outro mundo. Um mundo onde o glamour nāo mais irá determinar a
maneira como ela vai ser vista pelo todo
da populaçāo. Um todo, que de uma maneira geral, vai até recriminá-la e onde
homens e mulheres heteros, nas mesas dos mais fedorentos botequins, irão dizer
que “ Nāo pegaram ela direito”, "Ninguém vira
sapatão da noite pro dia" e outras barbaridades que nāo precisam ser aqui declinadas.
Meus parabéns a Daniela Mercury pelo orgulho e certeza que ela tem
sobre os destinos da sua vida, que só a ela pertencem, mas que nāo teme quando
seu ato é submetido a lente de aumento da hipócrita sociedade brasileira que
ainda se choca, mais de cem anos passados da aboliçāo da escravatura, com as
regras da nova lei sobre contrataçāo de empregadas domésticas.
A atitude de Daniela Mercury vai além do amor que sente pela nova
parceira, vai além das novas relações familiares que serão geradas, vai além de
muitas outras coisas, mesmo que ela nāo tenha tido essa intençāo.
Essa decisão acontece num momento em que estamos sendo agredidos
diariamente com os pensamentos mais racistas, nazistas e sectaristas de cunho religioso,
como há muito nāo se via.
A democracia brasileira está em crise, está doente, quando ela nāo
possui elementos que promovam a harmonia
entre as religiões, (onde o poder econômico determina a quantidade de
fiés), quando ela nāo promove o respeito
as opções sexuais individuais e o pior, quando os meios de comunicação tratam
tudo isso como curiosidade de artista, nāo promovendo programas que levem ao
debate e a informação da populaçāo. Nāo dando voz e imagem a homossexuais e
praticantes de religiões de origem negra, o mundo midiático está contribuindo
para a perpetuação das discriminações e incentivando a violência.
As infelizes afirmações do pastor Marcos Feliciano revelam o seu
desprazer com a palavra democracia,
talvez porque ela tenha o vocábulo “
demo” no início. Tudo bem, ele nāo é obrigado a ser democrata, mas a democracia
combalida de nossos dias lhe permite ser mal educado. A nossa democracia nāo
está me protegendo das ofensas diárias que eu sou obrigado a receber por parte
deste parlamentar da fé, ou melhor, pra
lamentar da fé.
As religiões e partidos políticos alinhados a este Pastor estāo
criando no Brasil um caminho para chegarmos a uma guerra santa, que nāo terá
nada de santa, porque, como no passado, se formos encurralados, impedidos de
vivermos nossa liberdade, iremos reagir. “Folga negro de Angola que ele nāo vem
cá. Se ele vier quilombola, pau a de levar”, já dizia o refrão.
Quando o Pastor Feliciano diz que a liberdade de um termina quando
começa a liberdade do outro, está repetindo o texto que foi usado por muito
tempo pelos simpatizantes do golpe de 64. Isso é caô. A minha liberdade começa
e acaba aonde eu quiser, nāo existe liberdade controlada. Se o outro quer que
eu viva as minhas preferências as escondidas, ele está me impondo uma prisão,
partindo do pressuposto que o mundo dele é que é o bom, o digno, o melhor, o
santo, o mundo da “moral e dos bons costumes”.
Daniela Mercury fez o que muitos de nós, principalmente os artistas,
precisamos fazer: esquecer um pouco o lance da imagem e os prováveis convites
da TV e do segundo caderno para aparecer
aqui e ali, e colocarmos nossas preferências existenciais, políticas e
religiosas ao alcance do grande público. É urgente.
Vários setores estão reagindo a onda de progresso no Brasil tentando
levá-lo de volta aos tempos da inquisição. Alô! entidades judaicas, coloquem-se,
por favor. Nāo deixem essa briga só para
nós das religiões de origem africana ou para os gays da passeata. Isso um dia
pode sobrar pra vocês também aqui no Brasil. O Pastor Feliciano está fazendo a
parte dele, a Daniela também. Eu faço a minha escrevendo aqui nessa modesta
trincheira digital. E você?
Assinado: Cláudio Jorge. Negro, músico, botafoguense, Vila Isabel,
morador da zona oeste, Ogan do Oxalá de Māe Antonieta Babamim, heterossexual, boêmio, simpatizante de qualquer movimento cultural ou político que tenha como
meta a liberdade de existência. Como diria mestre Wilson das Neves: trata de
ti.
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