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E lá vamos nós mais
uma vez nos entregarmos ao exercício de pular por cima das cascas de bananas
jogadas no nosso caminho. Dessa vez a questão em torno da escolha de nossa
querida Fabiana Cozza para viver Dona Ivone Lara num musical.
Esse assunto é
muito complexo e nāo dá pra avaliar a situação, mesmo que em parte, em poucas
linhas. Entāo quem se interessar sobre minha opinião sobre isso, prepare-se, o
texto é longo e talvez desagrade muita gente.
Em primeiro lugar é
preciso que as pessoas entendam que estamos longe do auge de um debate em torno
do negro brasileiro. A coisa só está começando, mas já de uma forma suficiente
para causar o maior mau estar em vários setores.
Mau estar que se
reflete no desconforto de muitos que viveram por gerações fazendo, dizendo,
propondo , mandando, decidindo, proibindo, negando, promovendo e etc., tudo em
relaçāo ao negro, sua cultura e sua historia, sem a participação do
negro.
Hoje, depois de um
longo e tenebroso inverno, por conta de inúmeros motivos, o negro
brasileiro tem participação em parte do processo, nāo por integrá-lo, a maioria
ainda é barrada no baile, mas pelos canais que encontrou modernamente para
criticar, negar, reclamar, promover, influir, contribuir, participar,
reivindicar e propor mudanças num sistema altamente estratificado, sólido,
retrógado, racista, excludente, machista e xenófobo.
Quando atores
brancos pintavam a cara de preto para interpretar personagens negros, nāo havia
Facebook e afins, mas havia uma indignação que nāo chegou ao conhecimento da
mídia com as mesmas proporções que chegaria aos dias de hoje.
Quando filmaram e
levaram para a TV a Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, nāo havia uma
Thais Araújo, se nāo me engano, mas haviam outras atrizes negras que nāo foram
convidadas pro papel interpretado pela aparentemente branca e maquiada Sonia
Braga, mas também nāo havia Twitter nem Instagran pra gente reclamar.
É claro que a
indústria cultural pensa em faturamento, e faturamento passa por nāo expor
aquilo que é culturalmente sempre escondido, negros e negras em papeis de
destaque, de qualidade, de poder, de beleza e etc. Normalmente para negros e
negras sobram os papéis de traficantes, bandidos, empregados,
escravos, motoristas, capatazes ou negros e negras sexualizadas, com raríssimas
exceções. Sempre foi assim e a luta para se mudar este formado está aborrecendo
muita gente e nunca parou.
Infelizmente, por
uma série de motivos óbvios e indignos, negros nāo detêm os meios de produção.
Noventa e sete por cento dos diretores do cinema brasileiro sāo homens brancos,
o mesmo deve acontecer com os produtores de espetáculos musicais. Se fosse diferente,
que fosse um percentual de pelo menos cinquenta por cento de diretores e
produtores negros, nāo estaríamos aqui discutindo essa questão.
Uma questão que
expõe um drama interno, com o caso da Fabiana, que é a figura do mestiço
brasileiro. O texto que Fabiana publicou é comovente, cheio de verdades.
A escolha de que a
qual grupo racial se pertence é uma escolha pessoal. Durante séculos mulatos e
mulatas nāo se auto intitulavam negros, por motivos também óbvios. Se escondiam
entre moreno, mulato claro, pardo e etc., mas nāo se admitiam negros. O
consciência da negritude é uma conquista mais ou menos recente em relação a
“abolição da escravatura”, junto com parar de esticar o cabelo.
“Branca é branca,
preta é preta, mas a mulata é a tal”, diz a marchinha de carnaval. “É a tal”
para que? Eu pergunto.
Durante bom tempo
mulato significou “cor de mula” aquela mistura viralata entre as “raças puras”
negra e branca. Meu certificado de reservista me diz pardo. Se tivessem me
perguntado eu diria mulato. “Chega pra cá pro mulato que um amor de fato nāo
pode acabar”, letrou Joāo Nogueira para uma parceria nossa. Ou então, “fala aí
mulatinho”, como me chamava carinhosamente meu irmão de fé Wilson Das Neves,
com o adendo , “só eu posso falar assim com ele”. E ainda o “Mulato”, apelido
do grande músico Oberdan Magalhāes”, sem falar no “Salve a mulatada brasileira”
de Mestre Martinho da Vila.
A questão é que o
“mulato” vive contradições com os brancos e também com os negros. Se para
alguns brancos somos uma raça vira-latas, para alguns negros somos aqueles que
tiveram acesso a casa grande por conta do tom da pele mais claro. Ouvi da boca
de um amigo negro da antiga a afirmação de que de uma certa forma os mulatos
atrapalharam o processo de libertação do negro. Na opinião de alguns, somos
negros mas nāo muito, e sermos brancos mais escuros, nem pensar, nāo é
admitido. Entāo resolvemos ser negros, com muito orgulho, por que precisamos de
uma identidade num país racista, precisamos estar em um lado só, porque as
portas das oportunidades no Brasil impedem a entrada de negros retintos,
mulatos e mulatas claras, do mesmo jeito, com algumas facilidades para os últimos.
Fabiana Cozza com
certeza foi escolhida pro papel por ser uma excelente cantora, por ser
conhecedora do trabalho de Dona Ivone Lara e por ser uma figura conhecida do
público, comercialmente isso é bom.
Os que criticaram
essa escolha provavelmente gostariam de uma pessoa com uma aparência mais
próxima de Dona Ivone, uma negra do samba típica, com o que eu concordo.
Reivindicam no mercado cultural uma visibilidade negra que nos é negada, sem
dúvidas.
Nāo imagino uma
atriz ou cantora negra sendo convidada para interpretar um personagem branco e
é aí que o nó se aperta. Deveria poder. Acredito que quando isso acontecer nāo
estaremos mais perdendo tempo com essas questões.
Entāo sintetizo
minha opinião no seguinte, baseado principalmente na liberdade de expressão:
toda produção tem o direito de escolher quem quiser para atuar em seus
trabalhos; todo seguimento tem o direito de criticar as escolhas de qualquer
produção se ela estiver atingindo os interesses de suas causas; eu, por
exemplo, critico os inúmeros shows que existem por aí onde só atuam músicos
brancos, ou só atuam músicos negros. Isso acontecer no Brasil é uma loucura. Se
o apartheid fosse oficial explicaria, mas nāo é.
As acusações aos
críticos da escolha generalizadamente como sendo de autoria do “movimento
negro” é injusta e racista, e a critica ao musical nāo tem nada a ver com negro
falando mal de negro, o nível do debate é muito alto e sofisticado.
E pra completar,
minha queridíssima Fabiana Cozza nāo deveria renunciar ao trabalho para que foi
escolhida. Ela é quem decide se é negra ou nāo o suficiente para o papel, e a
permanência dela no musical colaboraria para o avanço desse debate; finalmente
e principalmente, é preciso ser sempre criticada a nossa indústria
cultural que exclui seres visivelmente negros e mulatos dos papéis de destaque
na produção artística brasileira.
Estamos em plena
revolução racial no Brasil e nāo há revolução sem se tocar em
feridas abertas. Vai doer, para todos os lados envolvidos.
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