Se a gente der uma olhada de cima para o Brasil,
tipo drone, veremos com facilidade que a felicidade está passando ao largo de
muita gente. Cada um no seu canto com suas insatisfações e pequenos prazeres em
relação a tudo que vivemos no nosso amado país dos novos tempos. Os muito
ricos, aparentemente, devem ter menos problemas do que nós pobres mortais, mas
como eles ainda são humanos, por enquanto, devem ter lá seus problemas de azia,
enxaqueca, ressaca, chifres e brochadas, como qualquer mortal.
“Estes tempos não estão pra ninharia”, é frase que
vem lá do passado e se revigora a cada dia. Pós o êxtase do carnaval do Tuiuti vem a ressaca de
realidade com intervenção militar de brinde. Ou seja, preocupações e insatisfações para todos
os gostos.
Agora, se tem uma coisa que todo mundo sente
igual, independente do que se tenha no buraco do pano, nos deixando todos
democraticamente satisfeitos, felizes, é quando se ouve uma música daquelas que
atingem a alma, a mente, o coração, provocando prazer, reflexão, risos ou
lágrimas. Música, presente dos Deuses
para aliviar meus ais.
É o que aconteceu comigo quando ouvi o álbum
“Cumplicidade”, delicada performance de Ivan Lins e Gilson Peranzzetta.
Vou logo avisando ao leitor que ainda não ouviu,
que não se trata de um disco para se ouvir de qualquer maneira, é para ser
ouvido cerimoniosamente, no que de melhor essa palavra pode nos oferecer.
No meu caso, foi de fone de ouvidos, na
madrugada, meia luz, só eu e a taça de
vinho, nada mais. Mais que uma audição, foi uma imersão. Que álbum lindo! Por
inúmeros motivos.
A emoção de um encontro que não tem base num lance
de “mercado”, mesmo que cultural, tipo
fulano convida ciclano, ou ciclano interpreta fulano, é um destes motivos.
“Cumplicidade” é como um reencontro a portas
fechadas, uma intimidade, depois de muita atividade pública em canções, palcos
e discos ao longo de quarenta e quatros anos de parceria e amizade.
O compositor, intérprete e pianista genial,
prestigiado pelos maiores nomes da música mundial e o pianista e arranjador não menos genial
que tem na sua lista de fãs Quincy
Jones, o arranjador do Michel Jackson,
entre outros.
A cumplicidade dos dois vem de longe na fidelidade
de Ivan por tanto tempo ao arranjador que completou suas canções com
introduções memoráveis que se agregaram eternamente aos temas.
Duas coisas me chamaram mais a atenção neste
trabalho.
Primeiro o piano de Gilson e seus solos, seus
improvisos. Os improvisos de Gilson são dele, sāo originais, não são baseados
nas escalas do jazz que nós músicos normalmente nos dedicamos a dominar, embora de
vez em quando eles apareçam por lá.
O outro destaque é o prazer que dá ouvir as
músicas do Ivan num formato enxuto de voz e dois pianos. Melodias e letras
ficam mais expostas e temos a oportunidade de uma experiência única com o repertório
do Ivan, onde se destacam as letras do Victor Martins.
Em suma “Cumplicidade” é um título perfeito para a
produção da também cúmplice Eliana Peranzzetta, cumplicidade que precisa ser estimulada entre
os que curtem a música brasileira e seus músicos compositores e produtores, antes que seja tarde.
Essa crônica é minha modesta contribuição para
esse momento em que um desencontro entre criadores culturais e público foi
imposto a nossas vidas de forma contundente e acentuada.
Ivan e Gilson demonstram neste trabalho que fazem
parte daqueles que nāo entregam o jogo no primeiro tempo, nāo correm da raia,
nāo correm do sonho de uma música popular pacificadora, inclusiva, respeitosa,
honrada, talentosa, poderosa, unificadora, enfim, provocadora dos melhores
sentimentos, como deve ser. Parabéns pelo álbum meus camaradas. Tenho o maior
orgulho de ser amigo e parceiro dos dois.
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