
Publicado originalmente em O Globo no dia 8 de novembro de 2017.
31 de outubro de
2017. Terça feira, dia dedicado a Ogum, sincretizado com São Jorge, o santo
guerreiro.
Fui para a Faculdade
de Letras da UFRJ prestigiar a condecoração de Martinho da Vila como Dr.
Honoris Causa.
Do Flamengo até ao
Fundão, décadas se passaram em minha mente desde a primeira vez que ouvi falar
em Zé Ferreira, como alguns amigos o chamam em
Vila Isabel.
A trajetória de
Martinho até chegar ao título dos dias de hoje
impressiona pelo seu estilo de vida.
O Da Vila não é um
clássico militante negro, com suas
palavras de ordem e indumentárias evocativas de nossos ancestrais africanos,
mas não dá para contar a história do movimento negro brasileiro sem um capítulo
especial sobre o criador da Kizomba, enredo e evento internacional bancado com
recursos próprios.
Ele também não é
aquele executivo engravatado, bacharel em direito e funcionário do Itamarati,
mas não dá pra falar de lusofonia e das relações brasileiras com países
africanos sem falar em Martinho da Vila.
Martinho José
Ferreira não é o criador de melodias rebuscadas, de harmonias “ricas”,
“sofisticadas”, próprias daqueles que estudaram música, mas como contar a
história da canção brasileira sem destacar sua obra, letra e música, e falar do
impacto mágico que seus poucos acordes e voz dolente provocaram na alma
brasileira, atropelando com milhões de cópias vendidas as guitarras dominantes
da época?
Martinho tampouco é
patrono de escola de samba, não é carnavalesco, mas como contar a história do
carnaval carioca sem passar pelo personagem maior da Unidos de Vila Isabel?
Martinho sem ter
alguns encargos clássicos, formais, tem todos eles e mais alguns, por isso é
doutor de causa própria e foi belamente diplomado. Finalmente um super canudo
de papel muito merecido pelo conjunto, não só da obra, mas da vida.
Convido o caro leitor
a dedicar um tempinho pra dar uma olhada na biografia do “Batuqueiro” e tenho
certeza que você vai se surpreender.
Martinho da Vila, de
várias comendas e troféus acumulados ao longo dos seus oitenta anos, apontou na
cerimônia de graduação que este era seu reconhecimento mais querido.
Cantou Candeia e Silas de Oliveira para lembrar dos vários momentos da
história em que o samba e os estudantes se encontraram para cantar versos sobre
a liberdade e cidadania, nobres causas.
O título de Dr.
Honoris Causa concedido a Martinho da Vila é também um prêmio para a UFRJ, que
completa sua honorífica lista de homenageados com um símbolo brasileiro de
superação nascido na roça filho de colono, criado na favela, e que ganhou o
Brasil, o mundo, e com isso nós todos
brasileiros ganhamos também.
Título eterno, sambas
eternos, livros eternos, filhos e netos com carreiras encaminhadas e um curso
superior pra terminar. Martinho da Vila, como alguém já disse, um negro em
movimento.
Final da cerimônia
fomos saindo com o discurso de professoras e Reitor na cabeça, e nos reencontramos com a dura realidade
externa ao campus ao som do tiroteio vindo da favela.
A reflexão foi
inevitável. Um ex-favelado estava aqui ao lado recebendo o título de Dr. por
conta de sua trajetória de vida. Contra tudo e contra todos outros doutores
virão das comunidades inspirados em Martinho da Vila, mesmo que de forma lenta
e gradual, devagar, devagarinho, mas virão. (Cláudio Jorge)
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