Meu encontro com o cantor Augusto Martins numa noite de boemia na Lapa, Rio de Janeiro, mas precisamente no Carioca da Gema, uma casa botafoguense, me proporcionou um reencontro com os meus primeiros passos como músico profissional.
Ali, entre uma taça de vinho e outra, alguém puxou um samba do
Ismael Silva. Nos olhamos, nos falamos, nos entendemos e resolvemos fazer um
disco em homenagem ao Mestre.
Mas esse texto não é para falar do disco “Ismael Silva, uma Escola
de Samba”, que graças aos Orixás está sendo muito bem recebido pela crítica e
amantes da música. Esse texto na realidade é para falar do Ismael Silva.
Do processo da ideia do disco até ao seu lançamento e primeiras
entrevistas concedidas por nós, muitas reflexões me vieram sobre esse
personagem. Não só o lance da sua genialidade como compositor, ou da sua sacada
junto com seus amigos do bairro Estácio na criação da Deixa Falar, considerada
a primeira Escola de Samba do Brasil.
Uma coisa que me tem intrigado é que não encontrei ainda respostas
para as minhas perguntas: Como o cara que participou da criação daquilo que
conhecemos como samba é tão pouco conhecido no Brasil? Como o cara que foi o
maior parceiro de Noel Rosa é tão pouco citado? Como, com exceção do nosso
modesto trabalho, Ismael Silva não é alvo de glórias no centenário da gravação
do primeiro samba, que ele dizia que era maxixe? Como que o cara que criou a
primeira Escola de Samba só foi enredo
no carnaval da Canarinhos da Engenhoca no ano de 1975, em Niterói, nem tem seu
nome em placa nas sedes das Escolas de Samba? Como Ismael Silva, um dos
fundadores da primeira Escola de Samba do mundo foi barrado no acesso ao
camarote dos desfiles, ainda na Presidente Vargas? Eu estava lá. Por que esse
ostracismo, essa marginalidade histórica?
Eu não tenho as respostas definitivas para isso tudo, mas tenho cá
minhas especulações e sei que pra mim é muito difícil escrever sobre Ismael sem
paixão, sem parcialidade.
Meu pai, o jornalista Everaldo de Barros, era amigo do Ismael e ele
esteve presente na minha festa de batizado. Ismael Silva foi o primeiro artista
de grande porte na história da música brasileira com quem eu tive o prazer de
trabalhar. Foram nos três últimos anos de sua vida e com ele participei de
vários shows e gravações. Alguns do tipo voz e violão e outros junto com o
pessoal do grupo Samba Som Sete, do meu amigo o percussionista Belôba que
participou do disco que lançamos.
Existem muitos mistérios em torno de Ismael Silva. Ora por não
haver documentação a respeito, ora por não haver consenso sobre a vida deste
mestre, e também, e acho que principalmente, por não haver uma avaliação
condizente com o personagem Ismael Silva.
Não sou pesquisador, mas quero arriscar aqui alguns palpites, reflexões
que servirão de combustível para os nossos debates pelos bares da vida.
Nunca se destacou na história de Ismael Silva o fato dele ser um
negro brasileiro nascido poucos anos depois da abolição da escravatura. No
Brasil se afirmar a negritude de um personagem ainda é um tabu, imagine-se nos
anos 20/30, quando Francisco Alves apresentava Ismael Silva como um “negro de
alma branca”, e Ismael não gostava disso. Um negro que se destacou na escola
primária. Um negro que na juventude, junto com seus amigos do bairro do Estácio
inventaram um novo ritmo, uma nova maneira de cantar e tocar a música dos
negros já influenciada pela música européia. Criaram o samba da forma como
conhecemos hoje com primeira e segunda parte, melodias rebuscadas e batucada
diferente. Um negro que pensou em escola de samba porque os negros necessitavam
brincar o carnaval sem levar porrada da polícia, protegidos por uma corda. Não
só porque havia uma Escola Normal no Estácio, mas também por conta disso. Vejo
essa citação da Escola Normal como a versão poética da história.
A vida de Ismael Silva sempre foi marcada por mistérios. Eu diria,
pelo pouco que convivi com ele, que ele era chegado a ter uma vida pessoal mais
reservada. Com certeza Ismael vivendo no nosso tempo não teria facebook.
Eu encontrava com ele num bar na esquina de Rua do Riachuelo com
Gomes Freire, no Centro do Rio de Janeiro. Ele dizia que lá era o escritório
dele. Ele morava num sobrado ao lado que ninguém tinha acesso, acho que só o seu
grande amigo o fotógrafo Clóvis Scarpino. Qualquer assunto com Ismael era neste
bar da Lapa que ele resolvia.
Ismael andava de bengala, tinha uma ferida no pé e isso também é
cercado de mistérios. Já disseram que foi uma macumba feita por uma mulher. É
possível, afinal, grande parte da obra do Ismael ele está praguejando algum
amor ingrato, embora essa fosse a moda antigamente e quase nunca o compositor está falando de suas próprias
experiências.
Como alguém tem um ferida que não tem cura? Conheço a experiência de um parente de um amigo que
passou a maior parte da vida com problemas de varizes por ter medo de fazer uma cirurgia. Terminou tendo o pé
amputado já na velhice. Seria o caso do Ismael? Medo do tratamento?
Ismael foi preso por dar um tiro na bunda de alguém que molestou
sua irmã. Ismael era malandro, um bamba do Estácio. As coisas naquela época
eram resolvidas assim, questão de honra. Mas ele era um negro e pegou dez anos de cadeia. Saiu três anos depois por bom
comportamento. Ismael não era bandido, não era assassino ou assaltante. Era um
“malandro” e isso era outro papo no início do século vinte naquele meio em que
vivia. Meio em que viviam todos os descendentes dos escravos africanos
recentemente libertos, empurrados para os morros da cidade. Ser malandro
naquela época era título de nobreza. Se
bobear, dependendo do olhar, ainda é.
Ismael era um homem de sorte. Dos irmãos, foi o que ficou junto
com sua mãe, quando os outros tiveram que ser distribuídos entre familiares com
as dificuldades advindas com a morte do
pai. Veio para o Rio de Janeiro para o bairro do Estácio, e lá cresceu. Conheceu
Francisco Alves que entrou na parceria de muitos de seus sambas em troca da gravação
e dinheiro. Para um negro da época, e ainda hoje, as artes são uma maneira de
posicionamento social. Valia a pena “vender” a parceria e ser reconhecido
socialmente. Hoje não precisamos mais vender as parcerias, os tempos mudaram,
mas ser artista ou jogador de futebol ainda é um caminho de posicionamento
social, embora os tempos também tenham mudado e o racismo esteja hoje sendo
menos velado do que antigamente no tempo do negro de alma branca. Na minha
opinião, está melhor agora.
Temos que admitir, conforme
ressaltou o jornalista Hugo Sukman no encarte de nosso disco, que se não fosse
o encontro do homem branco Francisco Alves com o negro Ismael nada dessa música
teria chegado até nós, do mesmo jeito que não teria chegado a música dos negros
americanos no mundo não fosse a Motown Records do judeu Berry Gordy Jr.
A vida é assim. Mas é duro
esse raciocínio, porque se não fosse a atrocidade da escravidão também não
estaríamos aqui, não haveria o samba que tanto deu e dá ao Brasil. Então em
nada me conforta os caminhos que Ismael Silva teve que trilhar para tentar se
tornar um “cidadão”, um cidadão de
primeira, no meu ponto de vista, por conta da revolução que promoveu junto com seus
camaradas do Estácio e do legado que deixou para todos nós.
Já ouvi alguns observadores dizerem que Ismael era um compositor
que tinha a necessidade de ter parceiros, que seria bom de primeira (primeira
parte), como se fosse uma “falha” da sua competência. Ele era bom de primeira
também.
Numa entrevista a revista “O Cruzeiro”, quando perguntado qual era
o compositor de sua preferência, Noel Rosa afirmou que eram dois: Almirante,
pela cultura, pelo saber e Ismael Silva, por ser o autor das melodias mais
bonitas do “samba de morro”.
Concordo com Noel, mas acho engraçados esses rótulos que marcam as
pessoas. Se é assim, necessitar de parceiros e ser o autor das mais lindas melodias, onde classificar pérolas como
“Contrastes”, “Peçam bis”, “Antonico”, “Meu único desejo”, “Me diga teu nome”,
“Aliás”, “Novo amor”, “Tristezas nāo pagam dívidas”, “Todo mundo quer”, “Ninguém
tem que achar ruim”. Todas de sua exclusiva autoria, música e letra e que nāo
foram “vendidas” ao Francisco Alves.
Sem nenhuma intenção de fazer comparações entre os talentos de
Ismael e Noel, ambos passaram um tempo completamente esquecidos do público e
mercado. Noel depois de falecido e Ismael ainda em vida após cumprir pena.
Aproximados por Francisco Alves, após a morte de Nilton Bastos,
Ismael foi o parceiro com quem Noel mais compôs, total de 18 músicas.
A redescoberta de Noel após sua morte, segundo o escritor Ruy
Castro no livro “A noite do meu bem”, se deu por conta de um movimento do Clube
dos Cafajestes, formado por milionários, artistas e jornalistas, todos
boêmios, que frequentavam as boates de
Copacabana no final dos anos 40. Inconformados com o desconhecimento da obra de
Noel por muitos, inclusive por músicos, eles promoveram numa dessas casas
badaladas um show da cantora Aracy de Almeida cantando Noel e que terminou por virar disco e o compositor
da Vila ressuscitou para a história da música popular. Assim como Nara Leāo
sacou Zé Kéti e João do Vale tempos depois. Ou seja, a classe média e os ricos
cariocas, através da Aracy bancaram essa redescoberta de Noel Rosa. Noel Rosa,
branco, quase médico, compositor de samba canção, enfim, autor das músicas mais
bonitas do asfalto, mas que transitava com facilidade nos morros cariocas.
Ismael Silva não teve a mesma sorte de Noel, Zé Kéti e João do
Vale. Embora fosse também cultuado pela classe média, intelectuais e
jornalistas, não chegou a ser merecedor de nenhum projeto no sentido de
restabelecer para as novas gerações o potencial de seu repertório e de toda a
figura emblemática que ele é para a história
do samba.
Muito pelo contrário, nos bares da vida volta e meia alguém faz
menção a uma nunca provada homossexualidade do artista, até mesmo sobre
pedofilia já se levantou essa hipótese. São os boatos, os mistérios que rondam
a memória de Ismael Silva.
Outra controvérsia que povoa a vida de Ismael está no fato de
Chico Buarque ter dito em algum momento que o cara que realmente lhe
influenciou foi Ismael e não Noel Rosa,
porque na família Hollanda as músicas do
Ismael eram muito admiradas, tanto que
Cristina Buarque é uma profunda conhecedora deste repertório.
Mas tempos depois foi noticiado que Chico falou isso para dar uma
moral pro Ismael que estava meio por baixo. Já ouvi até alguém dizer, não me
lembro agora quem foi, o Clóvis Scarpino talvez, que o Chico mensalmente
enviava uma quantia pro Ismael poder segurar a onda.
Como saber? Só perguntando ao Chico.
A foto que o leitor vê aqui anexada foi feita pelo fotógrafo de
cinema Clóvis Scarpino durante um evento no Teatro João Caetano no Rio de
Janeiro. Ele foi um fotógrafo da cidade do Rio de Janeiro e um fiel escudeiro
de Ismael Silva e seu fotógrafo particular. Sempre o acompanhava nos shows,
estava sempre atento as questões de saúde do Mestre e era um fā ardoroso do Ismael
Silva. Foi ele quem nos apresentou nos meus vinte anos. Meu último encontro com
Scarpino, já cego, foi num evento comandado pelo Adelzon Alves na casa de shows
Asa Branca na Lapa.
Puxa. Bateu a maior saudade destes dois, Ismael e Scarpino. Um
arrependimento também me invade. Por que eu não perguntei essas coisas todas ao
dois? Lógico, eu não sabia que iria precisar disso um dia. Coisas da juventude.
Comentários
Obrigado por nos trazer a lembrança do Ismael e do Grande Clóvis Scarpino.
Hélio Mário