E cá estou eu mais uma vez nas nuvens, que parece ser o espaço onde eu realmente encontro tempo para escrever as minhas mal traçadas.
Depois que passei pelo controle de
passaportes tive a gratíssima surpresa de encontrar o meu amigo, o pianista e arranjador Leandro Braga, também aguardando o embarque para o
mesmo destino que eu.
Foi um papo rápido, mas profundo, que passou pelas nossas mudanças de bairro no Rio de Janeiro, sobre nossas origens africanas e
portuguesas, sobre a condição de médico do Leandro, que volta e meia é convocado quando alguém passa mal, justamente no vôo que ele está e logo ele que não lembra mais nada do que aprendeu sobre o corpo humano. A música tomou conta do ser Leandro Braga e apagou tudo que havia na sua memória anteriormente sobre o assunto. Ele
praticamente foi abduzido pela música.
Antes de entrar no avião um encontro inusitado com o chefe da minha mulher. Ela está em fim de férias, o chefe começando as dele e eu viajando parar trabalhar, mas com aquele toque de férias, segundo a minha patroa. Ela acha um deboche eu dizer que estou
indo trabalhar. Pegar um avião pra Europa, ir tocando violão, rindo de qualquer coisa com os amigos, tomando vinhos e ganhando um
dindin. Tá bom, concordo. Mas concordo só com a Renata. Ela fala isso de
pilha. Ela entende o meu ofício e é testemunha conivente dos sufocos que passei, e as vezes passamos, por
conta dessa profissão que escolhi.
O problema é que tem gente que até hoje acha de verdade que tocar um
instrumento não é trabalho, é diversão. Também concordo. Concordo que também é diversão, não é só trabalho.
Mas o que eu queria mesmo escrever
não era sobre isso. O Leandro Braga me cobrou que minhas crônicas no blog estavam muito rarefeitas e que isso tinha haver com preguiça. Eu argumentei que no blog
escrevo por inspiração, mas senti que ele não concordou muito com isso não.
Então o funcionário da cia aérea soltou o tradicional "vamos dar início ao embarque do vôo 074 com destino a
Lisboa...".

É nessas viagens que aproveito pra
colocar em dia a leitura e também na bolsa da frente alojei um número da Revista Raça Brasil. Comprei a revista por conta da matéria de capa com o Péricles, cantor remanescente do extinto grupo Exaltasamba e
que tem se lançado numa bem sucedida carreira
solo.
Mas a minha melhor surpresa
folheando a revista foi encontrar uma bela matéria com o compositor Macau, autor do sucesso "Olhos
Coloridos", um verdadeiro hino da negritude no Brasil.
Macau é meu vizinho lá nas Laranjeiras e de vez enquanto
nos esbarramos por aquelas esquinas.
A história dele é comovente, é a história de muitos negros brasileiros e
lendo sua entrevista me lembrei muito do meu amigo Ovídio Brito, criado, como ele, na Favela do Pinto.
Depois de ler sobre Macau terminei
lendo a revista toda, tinha tempo pra isso, e gostei bastante. Fazia tempo que eu na lia a Revista Raça e a linha editorial está excelente, mais madura, abordando
questões bem profundas da condição do nosso povo negro sem ficar
muito naquele lance de produto de beleza para negros e negras, que também é muito importante, já que ficamos marginalizados durante séculos destes prazeres, mas a abordagem de assuntos ligados a terra, a
ecologia, a cidadania, cultura e política, enfim, todos passando pela
causa dos negros, dão a revista um status ímpar na histórias das publicações brasileiras voltadas para estes assuntos.
De repente, não mais que de repente quem eu vejo passar pelo corredor da aeronave? A
atriz e escritora Elisa Lucinda.
Foi aí que veio a inspiração para eu começar a escrever mais essa crônica nas nuvens. Achei tudo isso
uma maravilhosa coincidência. Leandro Braga e Elisa já trabalharam juntos. A revista Raça falando do Quilombo do Sacopã, da Favela do Pinto do Ovidio e
Macau. Elisa de Vitória, Espírito Santo, Barra do Jucú, Madalena, Madalena, Lisboa,
colonização, abertura das comemorações do ano Brasil/Portugal - motivo dessa viagem -, escravidão, abolição e um monte de outras coisas
vieram a minha cabeça neste momento provocadas pela
leitura da Revista Raça Brasil e destes encontros nas
nuvens.
É, não tem jeito. Vou pedir mais um vinho a aeromoça, chamar o sono e desejar sonhar
com os meus antepassados. Meu avô e avó escravos libertos e meu pai, todos baianos de Salvador. Meu avô de São Luiz do Maranhão, minha avó e minha mãe lá de Itaperuna. Gente que me fez
assim: negro, mulato, brasileiro, orgulhoso de tudo isso.
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Rosa Maria