Pular para o conteúdo principal

Os cães ladram e “Caravanas” passa.


Assistir a mais um lançamento de Chico Buarque, como sempre, é viver um vendaval de paixões, de emoções, reflexões, indignações e boas  lembranças.
Nos primeiros acordes e canções bate logo aquela sensação mista de prazer e surpresa. Caraca! A música brasileira de consumo era assim a anos atrás!.
Foi com essas harmonias, com essa poesia, com essa riqueza melódica que eu construí em mim a emoção pela música, porque a música de Chico é soma e fruto de tantas outras que vieram antes dele e que também moldaram meu gosto, meu prazer auditivo. Normal que seja assim.
Mas eu ouvi o disco novo muitas vezes antes do show, e assim como no anterior, algumas faixas me soaram muito simbólicas, como se estivessem sublinhando a história do Brasil contemporâneo. Chico está presente em todas as fases da história politica do Brasil desde o inicio de sua carreira. Coerência.
“Paratodos”, “Sinhá” e agora “Caravanas”. Chico toca mais uma vez no ponto que eu acho central, chave, de nossa questão nacional que é a escravidão, o racismo, a vida do ser humano negro no Brasil.
Talvez aí esteja a grande bronca da elite contra Chico Buarque. Era para Chico ser um deles, colocar o imenso talento e os olhos de cor ardósia a disposição dos valores da classe dominante, dos descendentes do escravocratas.
Mas nāo rolou essa, como temos acompanhado a cinquenta anos vendo, ouvindo, lendo e admirando Chico Buarque de Holanda.
O novo show de Chico junta a modernidade de um CD com apenas sete canções a muitas outras consagradas que juntas vāo contando uma historinha.
Na minha cabeça de indignado com o impeachment e adepto do “fora Temer”, foram vários os momentos que identifiquei o roteiro com estes temas, eu e mais alguns da plateia que eventualmente gritaram palavras de ordem aqui e ali em algum momento do show. Me foi impossível nāo associar “Sabiá” às eleições de 2018.
Assisti ao show num dia triste, dia em que Ruy Faria partiu do nosso convívio. Com certeza uma parte de Chico foi junto com ele. A dobradinha com o MPB4 por tantos anos é um símbolo, uma lembrança de tempos difíceis no Brasil, para os jovens, para a música, para a politica, enfim, mas é lembrança principalmente de shows e arranjos vocais memoráveis para as canções do Chico.
Foi muito bom chorar com canções que já nāo ouvia a algum tempo. O show “Caravanas” funcionou em mim como um banho de ervas, uma limpeza da energia ruim que tem rondado nossos dias cariocas, uma purificação dos ouvidos e da alma, poluídos com a mudança de padrão da música brasileira de alto consumo. Poderia ser mais amargo em relação a isso, mas estou noutra nesse momento.
Só uma coisa faltou no novo show do Chico Buarque. A presença de Wilson Das Neves. Nāo tanto pelo baterista genial que ele era. Jurim Moreira, seu substituto, deu uma aula de bom gosto e precisão dando seguimento a marca do Das Neves, a mesma do Jurim,  que é a genialidade dos músicos discretos. Acrescente-se que a banda que acompanha Chico Buarque, dirigida pelo Maestro Luiz Claudio Ramos sempre foi ponto de destaque nos shows do artista.
Mas a presença do Wilson, na minha opinião de fā, fez falta pelo astral que ele imprimia nos shows do Chico, antes, durante e depois, como a presença de Marçal em outras épocas.
Uma falta lindamente suavizada pela homenagem que o “Chefia” faz ao parceiro em “Grande Hotel.
Minhas reflexões foram muitas neste show, mas a música “As Caravanas” ocupou em mim o assunto principal. Fiquei pensando se o povo do Arará já ouviu essa música. Se ouviu, o que acharam os “suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho? Fui vizinho dali, no Cachambi, ao lado da “Coréia”.
Outro dia eu estava numa estação do BRT na zona Oeste. Ao meu lado um casal de jovens brancos com dois filhos. A portas se abriram e demos de cara com a música do Chico. Jovens negros sem camisa amontoados na porta e muitos outros do mesmo jeito mais pra dentro do ônibus.
A reação imediata da família foi correr para outra porta e eu entrei. Fiquei bem junto deles e disfarçadamente os observei nos detalhes. Pensei comigo. Estes jovens devem estar vindo da Cidade de Deus para irem a praia na Barra. Vāo saltar no terminal Alvorada e vāo a pé até a orla. Só isso. Foi o que aconteceu e  a música do Chico começou a tocar bem alto na minha cabeça.
Termino mais uma vez sugerindo aos produtores do Chico Buarque, e isso vale para todos os grandes artistas do Brasil da mesma geração do Chico, a realização de temporadas populares. Minha geração usufruiu desse beneficio, e se hoje estamos reclamando tanto do mercado de música no Brasil, de certa forma é porque nossos jovens nāo estão tendo acesso a outras formas de fazer e ouvir música. Chico Brown, meu filho e os filhos de outros músicos, sāo privilegiados. Ô sorte!
Pra finalizar, para aqueles que atacam a pessoa e o que representa Chico Buarque de Holanda para a história do Brasil, fica o velho ditado: os cães ladram e “Caravanas” passa.



Comentários

Unknown disse…
Genial!!! Aliás, geniais. Afinal, Chico por tudo o que você bem descreveu e você por fazer tal descrição com maestria. Já era fã do compositor e intérprete. Declaro-me agora fã do colunista. Blogueiro está muito na moda. Rsrs.

Postagens mais visitadas deste blog

Matura idade.

Enfim, faço sessenta anos neste 3 de outubro de 2009. Não são aqueles anos intermediários entre a juventude e o início do fim, tipo quarenta ou cinquenta. São sessenta anos, meus camaradas. Ao contrário do que eu mesmo poderia imaginar, não vou lançar CD comemorativo, não vou fazer show comemorativo de idade e não sei quantos de carreira, nem vou fazer nenhuma roda de samba. Também não vou receber os amigos no Bar Getúlio, como pensei em algum momento. Minha comemoração dos sessenta vai ser em família, fora do Rio, na calma. Vai ser desse jeito porque ao longo destes anos todos desenvolvi uma arte que aprendi com meu pai que foi a de fazer amizades e comemorá-las, frequentemente. Entre tantas que cultivei em todo esse tempo, além de minha mãe, duas não estão mais por aqui – Paulinho Albuquerque e Luiz Carlos da Vila. Um festão de sessenta anos sem eles, é choro meu na certa. Além disso, eu teria que estar com uma grana que anda meio fugida de mim, para não deixar amigo nenhum sem ser c

É assim que tem que ser

Minha amiga Patrícia da Hora foi curta e fina. “E o blog? Não vai mais escrever?” Essa cobrança, que pra mim chega como um elogio, chega também como um traço de sublinhar neste meu momento de mais uma excursão a Portugal. Além do trabalho que vim desempenhar, cheguei com o objetivo de colocar em dia meus escritos visando o livro de crônicas que desejo publicar que tem como eixo central as várias viagens que realizei pelo mundo com a minha viola em baixo do braço. Vir anualmente a Portugal é acompanhar de longe algumas sutis mudanças, mas é também possibilidade de encontros extraordinários. Um desses foi semana na passada quando fomos assistir ao extraordinário show da Maria Rita no Coliseu de Lisboa. Matar as saudades do Camilo Mariano (bateria) e do Jota Moraes (pianista e arranjador) foi muito bom. Melhor ainda foi almoçar lá no seu Guilherme com Miudinho, Nene Brownn (percussões) e o Camilo. Marcelinho Moreira sugeriu o Muralha, um vinho branco do bom, que serviu para acompanhar a

Chora cuíca

E Deus nos leva mais um dos nossos, mas ele sabe o que faz. Segundo Wilson das Neves, Deus estava precisando do Ovídio Brito lá por cima. Mais uma separação que se junta a tantas outras e que irão fazer muita falta por aqui. Fiquei amigo do Ovídio lá no início de carreira quando eu tocava com João Nogueira e ele com Beth Carvalho, integrando a Fina Flor do Samba. Foi um amizade que percorreu todo esse tempo regada a muito trabalho juntos, tristezas, mas principalmente muita alegria, muita boemia. Ovídio Brito era várias pessoas. Nascido e criado na Favela do Pinto, atuou em todos os setores da vida musical no Brasil e no exterior. Um herói, no melhor sentido da palavra, que sempre encarou de frente as adversidades da vida, e não foram poucas, transformando os problemas em música e festa. Numa época em que não havia ONGs, nem o chamado “trabalho social”, Ovídio Brito levava os mais renomados artistas brasileiros para irem a sua festa de aniversário lá na Cidade Alta, no bar do qu