Gabrielzinho do Irajá, Carlinhos 7 Cordas, Cláudio Jorge, Moacyr Luz, Rosania Alves e Marquynhos Diniz.
Foto de Karyme Branka
Foto de Carlinhos 7 cordas
Nunca pensei que aos
sessenta e cinco anos ainda estaria participando do carnaval carioca,
principalmente porque eu não faço a menor questão de carnaval. Parece
loucura, mas é isso mesmo. Eu gosto
de samba, farra, boemia e alegria o ano
inteiro. Ir pra rua, entrar em bloco, no sol, na chuva, desaparecer do mundo
nos três dias de folia, feito meu amigo Felipe
Barros, nunca foi o meu forte. Decididamente eu não sou um folião, mas adoro os
elementos da festa.
A história dos negros cariocas através do carnaval, a música, a criatividade
das fantasias, o carnaval de rua, em todos estes pontos existem coisas bem
legais acontecendo.
Mas como todas as
coisas que têm valor na vida, nem
tudo é confete e serpentina nos momentos momescos.
Os assaltos, o Fantástico, a expulsão do povo do Sambódromo, a encampação do carnaval pela AMBEV, o massacre das propagandas da TIM,
RENAULT, PANTENE, SADIA e BRADESCO durante o desfile na pista e na TV, e os efeitos de computação gráfica na transmissão monopólica da Globo, acertada com a Liga e com a
Prefeitura, fazem parte do pacote.
Mas essa grande
escola do samba que é o carnaval carioca segue em frente, se
transformando, pro bem ou pro mal, não
dá pra avaliar enquanto se pula. Carnaval é carnaval, quase sinônimo de zorra, vale
tudo, seja o que Deus quiser, até
tudo se acabar na quarta feira, embora o Estado
e grandes empresas estejam ano a ano se aprimorando na tentativa de
controlar a explosão anual de alegria da população.
Voltando pro bloco,
depois de não encontrar um
banheiro químico limpo sequer,
esse carnaval de 2015 teve um sabor muito
especial.
Gustavo Clarão, Presidente da Viradouro,
teve a genial idéia de homenagear Luiz
Carlos da Vila, um dos maiores compositores do samba de todos os tempos,
juntando dois de seus sambas e transformando tudo em enredo da Escola.
Carlinhos 7 Cordas comandou a organização
do carro "Roda de Samba" e lá
fomos eu, ele, Karyme Branka, Esguleba, Moacyr Luz, Marquynhos Diniz e sua
esposa Rosania, mais Gabrielzinho do Irajá,
liderados pelo Teteu. Na maioria todos amigos íntimos e parceiros do Luiz Carlos da Vila.
Depois de passar o
dia sob um sol de rachar assistindo ao Boitatá na Praça XV, eu e Renata
chegamos na concentração da Viradouro na
Presidente Vargas sob uma chuva fina que foi engrossando a cada minuto. Logo na
saída do Metrô fomos recebidos pelo camelô:
"Olha a capa de chuva, dez reais. Quando começar a chover vai ser vinte, aproveita". Choque de realidade na
fantasia. Fomos fácil e rapidamente
convencidos e seguimos para a concentração devidamente encapados. Ali começava mais uma deliciosa investida pelo universo do Samba.
Chegamos próximos aos Correios e nos equilibramos numa coisa raríssima naquele espaço, uma estreita
marquise no prédio da CEDAE. A crise
da água batendo as nossas portas, a gente na
porta dessa empresa e a chuva a essa altura já caía pesada sobre a
avenida.
O primeiro amigo do
Luiz que encontrei foi o Bira da Vila e logo depois o Germano, lá de São Paulo. A ausência de bebida era apontada como incompatível com a memória do homenageado e
então saquei da
capa do violão aquela garrafinha
"chic" de carregar whisky. Caiu como uma bênção e um brinde ao
Luiz. Cada um deu um tapa e partimos
para os carros e alas.
Eu e Carlinhos tínhamos levado os violões,
a pedido do Clarão, pra gente fazer
aquela performance de roda de samba e tudo mais, mas não dava. A chuva não caía lá fora, como diz o
samba, a chuva caía aqui dentro e iria
destruir nossos instrumentos. Arrumamos um jeito de guardá-los dentro do carro e fomos apresentados ao Carvalhão. Neste momento tivemos que nos livrar de capas, guarda chuva e o
whisky acabou.
Comecei ali a viver
meu inesquecível momento de
"destaque" no desfile das escolas de samba. Teve gente tremendo com
medo de altura, mas o Marquinhos Diniz, humorista implacável, não deixava qualquer
tipo de preocupação tomar conta. Subir
foi fácil, passar para dentro do carro exigiu
malandragem e improvisação, mas tudo deu
absolutamente certo.
A chuva aumentou. O
desfile atrasou por causa da televisão e a Viradouro toda montada ao longo da pista
lateral da Presidente Vargas. A Escola imóvel sob um chuva torrencial a essa altura.
Me perguntei naquele
momento: Meu Deus, o que eu estou fazendo aqui? A fantasia encharcada até a cueca, meus trocados todos molhados no bolso da calça, o sapato cheio d'água e eu, pele e
osso, morrendo de frio, rezando para não
ventar.
Mais ou menos uma
hora depois vimos lá em baixo o Esguleba.
O Carvalhão foi mais uma vez
acionado e nosso percussa foi pinçado para junto de nós e aí aconteceu uma coisa
maravilhosa. Esguleba sacou da capa de seu pandeiro uma garrafinha
"chic" de carregar whisky, maior que a minha, e cheia. Foi mais uma
salvação. Sabíamos que Luiz Carlos não
nos deixaria naquela fria sem articular alguma coisa.
A chuva continuava
caindo por todos os lados e o som de um cavaco nas caixas de som nos animou.
Calma gente, ainda não era, e por várias vezes na próxima hora tivemos
essa ilusão de começo de desfile.
A chuva insistia e
comecei a entrar num certo delírio. Benção ou punição? O que fizemos, o
que deixamos de fazer? Mais um gole no whisky e começamos a cantar o samba pra ajudar a esquentar e nos levar para um
lugar onde a chuva não nos desanimasse.
Viajei no tempo e
fui lá atrás em 1988. Eu e Luiz Carlos da Vila caminhando do outro lado, no
"Balança mas não cai", observando a concentração da Vila Isabel do Kizomba. Achamos tudo lindo demais, mas em
nenhum momento imaginamos a loucura que seria aquele desfile, muito menos a vitória. Me lembrei da disputa que perdemos na Vila com a nossa parceira
com Agrião e Rodolfo.
"Olokum, Senhor dos mares...". O mundo do samba achava que seríamos vencedores e não fomos. Vida que
segue, a chuva continua caindo e finalmente
a Viradouro começa se movimentar.
Agora vai.
A chuva ainda era
muita mas aos poucos, como mágica, foi se transformando num afago, numa capa de chuva,
literalmente, num manto protetor, conforme íamos nos dirigindo para a cabeça da pista.
Daí até a Apoteose tudo
aconteceu em frações de segundo, como
sempre. A visão de um amigo aqui,
outro ali, na pista, nos camarotes, na cabine da Rádio Nacional, só aumentavam a vontade
de dançar e cantar o mais alto possível " Tantos, preto
velho já curou e a mãe preta amamentou, tem alma negra o povo".
Na troca de olhares
e gestos no alto do carro matávamos a saudade de
Luiz Carlos da Vila, matávamos a saudades dos
sambas que nos dão orgulho, como o do
Império Serrano deste ano também.
"É preciso a atitude de assumir a negritude pra ser muito mais Brasil",
seguimos cantando até chegar a Apoteose.
Dispersão, beijos, abraços, que pena que
acabou, a chuva continua. Dona Esmerilda, mãe do Luiz, Jane, a viúva, Sérvula,
Marquinhos de Osvaldo Cruz, só emoção e exercício de saudade.
Saída pela direita, um caminho escuro e tortuoso nos leva ao Metrô da Praça Onze.
A chuva não para e era como se estivéssemos
saído de um túnel do tempo e caídos na dura realidade
das nossas madrugadas mais comuns.
O Sambódromo é uma bolha de
alegria, luxo, originalidade, tradição,
equívocos monumentais e muita emoção. O mundo em volta, dos becos escuros, das biroscas, do câmbio negro dos ingressos, piora muito com a chuva que continuava sem
dar trégua.
Chego em casa, tomo
um banho quente, meia garrafa de vinho tinto, cochilo tentando ver mais alguma
coisa do desfile na TV. A última imagem é a Dandara Porta Bandeira da Vila Isabel. Me
recolho aos braços de Morfeo
esperando sonhar com meu amigo Luiz Carlos da Vila.
Obrigado Viradouro,
obrigado Gustavo Clarão, obrigado Carlinhos
7 Cordas pelo prazer a nós proporcionado. Que o show continue.
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